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Tempo de Ser
Extractos das Obras Publicadas

 

 

Prefácio (Psicanálise de uma criança. Uma visão clínica de um caso de autismo secundário. Isabel Margarida Pereira)

(Carta)

Minha Querida Amiga,

(...)

"Tendo procurado situar o seu livro num contexto que conheço bem e que não me parece supérfulo, chega o momento de lhe dizer quanto admiro o seu trabalho. Tivemos ocasião de trabalhar juntos muitas vezes e "muitas vezes", neste caso, quer dizer que nunca você se cansa e que tem uma inesgotável disposição para aprender e ensinar. Para si não existem os "agora não posso", "não tenho tempo".

Perguntava a mim próprio como iria ultrapassar a dificuldade de expor um material clínico, tão longo, de oito anos. A maioria da casuística analítica é curta (praticamente a única excepção o caso Klein, Richard). Mas nesse campo também o seu trabalho é conseguido. Alternando a descrição clínica com uma escrita mais alusiva e poética evita a monotonia. Com as suas interpretações surpreende-nos, como surpreende o jovem paciente."

( Prefácio de Pedro Luzes- ex- Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicanálise)


Introdução (Psicanálise de uma criança. Uma visão clínica de um caso de autismo secundário. )

 

 "A estória no lugar da história"

Este curto apontamento romanceado serve unicamente de suporte ao caso que irá ser apresentado, não tendo qualquer pretensão de mergulhar na intimidade dos seus intervenientes, nem de recriar algo a que será sempre impossível aceder.

Como deliberadamente foi omitida uma parte decisiva da anamnese, optei por deixar nesse lugar uma pequena homenagem ao meu paciente e a seus pais, procurando "sonhar" um pouco a sua história.

No quase Inverno daquele dia nasci. " Um nascimento demasiado rápido", disseram as pessoas.

Para trás ficara um longuíssimo tempo em que sentira os olhos da minha mãe pousados no horizonte. E naqueles lugares o horizonte é o infinito em que nos perdemos, é a esperança longínqua de chegar ao outro lado. Naquele horizonte da minha mãe esfumava-se o meu avô já doente, a saudade dorida do meu irmão...

Tudo foi muito confuso naquele tempo. Foi aquela partida para terras estranhas que no coração da minha mãe nenhumas memórias acordava, nem cheiros, nem sabores...

O meu pai, esse, quando olhava aqueles mares esquecia-se, por instantes, onde estava e voava de saudades até às suas recordações de infância. Os próprios frutos ao saboreá-los, faziam-no sonhar terras perdidas.

Eles queriam outro filho, mas PORQUÊ naquela altura?

Dizem que quando a morte se insinua, as espécies, num grito de sobrevivência, procriam. E a minha mãe, perdia, dia-a-dia, o meu avô, sentindo que as palavras entre os dois já não poderiam acontecer, palavras que fizessem sarar feridas antigas.

Nesse tempo tudo à sua volta parecia hostil, agreste, fechado. Não havia o tempo de pensar.

Mas como estaria o coração da minha mãe disponível para me pegar?

Talvez repartido em pequenas migalhas, minúsculas, cada vez mais minúsculas, porque, sabem, a dor parte mesmo.

Também para ela a separação da casa fora aterradora. Aquele monstruoso oceano abria-se num buraco  que a impedia de estender os braços e que se tornava também " o buraco" em que se sentia cair nos dias mais difíceis.

Eu era assim o bebé que lhe podia escorregar a cada instante e que queria tanto conseguir agarrar. Era a ameaça  da morte que pairava e a esperança de a poder vencer.

Por isso os meus pais deixaram o meu irmão pequenino galgar os mares, mares gigantes para ele. Ele seria, quem sabe, o portador da mensagem secretamente sussurrada ao ouvido do meu avô. E o coração da minha mãe não conseguia agarrar tudo ao mesmo tempo, o bebé que chorava, a dor que crescia dentro dela, este pequenino eu que teimava em medrar.

Assim, no canto silencioso de si mesma se foi escondendo, se foi calando, como se adormecesse aquelas múltiplas feridas e, quando me pegava nos braços olhava o interior de si mesma e via em cada traço, cada sinal a evidência dos terrores que a habitavam...